sexta-feira, 29 de julho de 2011
Umbanda é Xamanismo - por Alexandre Cumino
Há tempo venho estudando o Xamanismo, procurando estabelecer pontos de semelhanças e diferenças com a Umbanda. Uma das questões que me direcionou a esse estudo e sempre fez despertar minha curiosidade por outras culturas religiosas e espiritualidades diversas é o fato de que na Umbanda se manifestam espíritos de origens diversas, desde um caboclo brasileiro, um escravo, um aborígene, um hindu, um inca ou egípcio.
Essas entidades que alcançaram, e agora se manifestam na Umbanda, não foram umbandistas em sua última encarnação, logo nos ensinam que é possível evoluir e ascender por meio de qualquer tradição, desde que encontre um caminho ético e uma proposta virtuosa. Querer conhecê-los a esses mentores de Umbanda, é mergulhar em universos diferentes e muito ricos cultural e espiritualmente. Essas incursões nos permitem dar conta de que há algo de incomum que permeia as várias culturas do sagrado, independente da complexidade ou evolução tecnológica que certo povo tenha em relação a outro.
As experiências de transcendência, a mística, o transe e o êxtase espiritual são inerentes ao ser humano, são antropológicos e encontrados em todos os lugares no espaço e no tempo. E da mesma forma encontraremos na Umbanda esses mesmos fenômenos que a liga e aproxima de todas as outras tradições. Esse algo em comum já fez muita gente pensar na existência de uma religião primeira e original da qual todas as outras seriam desdobramentos, enquanto evolução e degradação da raiz primeva. Assim surgiram muitas teorias cientificistas defendidas por cristãos, ocultistas, esotéricos e até umbandistas, que adotaram a idéia de aumbandã, que é uma forma adaptada do conceito de teosofia, ambos com a racionalização de um mito, o mito de uma religião pura, original, que permeia e está presente em todas as outras.
As experiências comuns em todas religiões são mais humanas que “religiosas”, mais espirituais que rituais, mais instintivas que metodológicas, mais pertencentes à sensibilidade que à técnica, muito mais poesia do que prosa. São experiência que vem de nossas entranhas, são viscerais, “humano, demasiado humano”, “existem desde que o mundo é mundo, desde que o homem é homem”, podemos assim buscá-las nas sociedades mais primitivas, antigas e simples.
Essas experiências em sua forma mais bruta (não lapidada), nos mais isolados e remotos grupos sociais que se tem notícia, em toda sua simplicidade em lidar com o transcendente, é o que se convencionou chamar de Xamanismo. No entanto, as mesmas “experiências xamânicas”, boa parte delas, se repetem em culturas mais complexas, consideradas mais evoluídas socialmente ou tecnologicamente falando.
O que é Xamanismo, afinal?
Mircea Eliada, um especialista no assunto, nos afirma que um xamã pode ser um feiticeiro, um mago ou sacerdote, mas nem todo feiticeiro, mago ou sacerdote é um xamã, inclusive definindo que em muitas tribos, o sacerdote-sacrificante coexiste, sem contar que todo chefe de família é também chefe do culto doméstico.
O xamã é o grande mestre do êxtase. Que tem por primeira definição desse fenômeno complexo, e possivelmente a menos arriscada: xamanismo = técnica do êxtase. E por êxtase aqui podemos entender “transe”, estado alterado de consciência.
O xamanismo é uma técnica arcaica de êxtase, ao mesmo tempo mística, magia e religião, no sentido amplo do termo.
Desde o início do século, os etnólogos se habituam a chamar como sinônimos os termos “xamã”, “medice-man”, feiticeiro e mago (em português poderíamos acrescentar a essa lista os termos “curandeiro” e “pajé” – nota da tradução da versão de 2002) para dotar certos indivíduos dotados de prestígio mágico-religioso encontrados em todas as sociedades “primitivas” (p15).
Vemos na obra de Eliade, na tradução para o português, a observação de que “poderíamos acrescentar a essa lista de xamanismo, os termos “curandeiro” e “pajé” ao lado de feiticeiro, mago e medice-man, o que nos leva à pajelança indígena e à pajelança cabocla e suas ramificações e encontros com a cultura afro e européia, a qual fez surgem um sem número de espiritualidades.
A pajelança indígena é um xamanismo realizado pelos diversos grupos indígenas, guardando suas semelhanças e diferenças, em sua pluralidade de práticas, sem no entanto nos ater a quaisquer peculiaridades, podemos dizer que no geral e no específico, seu conjunto de práticas é xamanismo indígena brasileiro.
A pajelança cabocla é aquela praticada por grupos populares que tiveram ou não contato com a pajelança indígena e que realizam práticas muito semelhantes, nas quais algus casos se verifica o praticante justificando a sua ação por meio da explicação de que incorpora o espírito de um pajé (indígena) e que é ele quem realiza a pajelança, na qual o médium em questão está em transe de incorporação.
Agora, trazendo essa reflexão para a Umbanda, temos por parte dos caboclos que incorporam nos adeptos (médiuns) trabalhos mediúnicos que podem perfeitamente se qualificar como pajelança, em muitos casos a justificativa de que se manifesta um caboclo que em vida (em uma das tantas encarnações) foi um pajé e que agora volta para continuar seu trabalho junto ao médium de Umbanda como uma missão assumida. Com relação a essa explicação podemos dizer que aqui quem realiza o xamanismo é o espírito, no entanto, a um observador externo, fora dos conceitos teológicos e doutrinários, o que se vê é aquele homem ou mulher exercendo uma prática xamânica, na qual suas explicações sobre mediunidade e incorporação de espíritos são simples observações do que acontece com ele, o médium, enquanto se realiza o processo que tem em si todas as características xamânicas. Está incorporado de um espírito indígena, pajé e xamã, e nesse momento está realizando xamanismo, pois o médium em sua constituição física está ali presente, seja consciente ou não desse fato. Se faz uma cura, essa se realizou por meio dele, a se fizer alguma bobagem, a culpa é dele também.
Ao incorporar um caboclo que trabalhe com práticas xamâncias, posso não me tornar um caboclo, posso não me sentir um xamã, mas de fato estou sendo o veículo dessa prática que está acontecendo por meu intermédio, estou praticando xamanismo em parceria com uma força, inteligência, uma outra consciência que toma a frente de meu mental e que identifico como caboclo, uma entidade (espírito) manifestante da qual me considero apenas um instrumento, mas que de fato está em mim, realizando a prática xamânica.
Talvez por esse e outros aspectos, o professor de teologia Edmundo Pellizari afirma que “a Umbanda é uma poderosa pajelança urbana”, o que podemos, por associação, expressar como “a Umbanda é um poderoso xamanismo urbano”; não apenas um xamanismo, mas xamanismo, mas também xamanismo em algumas de suas expressões.
Fontes consultados: ELIADE, Micea. O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase. São Paulo. Ed. Martins Fontes, 2002. – CUMINO, Alexandre. História da Umbanda. São Paulo, Editora Madras, 2010.
Publicado originalmente no JUS - Jornal de Umbanda Sagrada.
terça-feira, 26 de julho de 2011
Saluba Nanã Buruquê - por Douglas Fersan
Comemora-se, tradicionalmente em 26 de julho, o dia de Nanã Burukê, a mais velha das orixás. A velha iabá, de originária do Daomé (atual Benin) e sincretizada com Sant’Ana, teria recebido do “Orun” (mudo espiritual), a tarefa de reger a lama. Num primeiro momento, isso pode parecer até mesmo uma informação supérflua, sem utilidade alguma, no entanto, um estudo mais minucioso sobre as características dessa iabá nos revela muita coisa.
A lama representa a união das águas com a terra, portanto, a junção de dois importantes reinos da natureza, responsáveis inclusive pela criação e preservação da vida tal qual conhecemos. O equilíbrio proveniente da união dessas duas forças naturais nos remete diretamente ao arquétipo de Nanã Buruquê, marcado pela seriedade, sabedoria, experiência, serenidade e ponderação dos mais velhos. Mas, é dos mais velhos também que carrega consigo a teimosia e a obstinação, chegando a ser intransigente em suas opiniões. Prova disso é que foi a única entre todos os orixás a não reconhecer a supremacia de Ogum sobre o reino dos metais.
Contam as itans (lendas africanas sobre os orixás) que quando Oxalá recebeu de Olurum a tarefa de criar os homens, tentou fazê-los a partir do ar (mas eles desmancharam-se no vento), do fogo (porém eles rapidamente pereceram, devido ao caráter efêmero desse elemento), da água (tentativa que falhou, pois eles evaporavam), da terra (mas eles ficavam duros, imóveis), até que Nanã veio em seu auxílio e apresentou-lhe a lama, material a partir do qual todos os homens foram moldados com sucesso. Assim, a velha orixá está ligada ao princípio da criação, da própria vida. Mas assim como deu a matéria para dar início à vida, Nanã a quer de volta após a ela esgotar-se. Dessa forma, associa-se Nanã também ao fim, à própria morte.
Portanto, Nanã Buruquê é a orixá da vida e da morte. Deu a vida com a sua lama abençoada, e acalenta os mortos na sua terra fofa, tal qual o útero materno, até que sejam decantados para voltar à vida (reencarnação). No entanto, a morte não representa o fim de tudo. Para os que acreditam na sobrevivência do espírito após o fim do corpo material, a morte representa o início de uma nova etapa, de um novo aprendizado, é um recomeço – fato esse que Nanã nos possibilita através do seu encantamento.
Pelo seu caráter sério e austero, Nanã Buruquê é um dos orixás mais respeitados nos cultos de Umbanda e Candomblé. A ela deve-se dá o tratamento respeitoso que os idosos merecem, reverenciando sua autoridade e sabedoria. A saudação “Saluba Nanã” (originalmente "Sálù bá Nàná"), entoada pelos filhos-de-fé quando essa venerável iabá adentra os terreiros significa “nos refugiamos em Nanã”, nos mostrando a outra face dessa senhora: a avó carinhosa, sempre disposta a abrigar os filhos e netos em seu colo macio e aconchegante.
Em 26 de julho comemoramos o dia de Nanã Buruquê. Que a bondosa iabá derrame suas bênçãos sobre cada um de nós, nos dando a sua serenidade, sabedoria e tolerância, para que possamos olhar nossos irmãos com olhos mais benevolentes e tolerantes, construindo assim uma cultura de paz.
Saluba Nanã.
Douglas Fersan
26/07/2011
segunda-feira, 11 de julho de 2011
As subversivas Pombogiras - por Douglas Fersan
Falar de pombogiras (ou pomba-giras ou ainda bombogiras) é uma tarefa complexa – talvez mais complexa que falar dos exus, demonizados pela tradição católica da nossa colonização. Essa complexidade ocorre porque além de serem demonizadas tanto quanto os exus – haja vista que as pombogiras são também classificadas como “exus femininos”, não estando, portanto, isentas desse sincretismo com o diabo bíblico – mas também porque a identidade brasileira é formada e calcada não apenas em valores religiosos, existe uma ideologia (ainda que sustentada pela religião européia) que configura a nossa sociedade, e o machismo é um de seus traços marcantes. Assim, se as entidades que trabalham na Umbanda (e nos cultos afro-ameríndios de uma forma geral) já são estigmatizadas, mas quando se trata de entidades femininas, esse estigma só tende a aumentar e ganhar um caráter ainda mais marginalizado, pois além de ser um ícone de uma crença já rotulada negativamente, ainda são mulheres e como tais, sob a ótica e a tradição cristã-européia, deveriam comportar-se de forma exemplar dentro dos padrões estabelecidos há tantos séculos.
Assim, não demorou para que se associasse a figura da Pombogira não só ao diabo, mas também à prostituta. Contribuiu para essa associação a maneira sensual como essas entidades se manifestam quando estão em terra. Como já foi dito, pelas tradições históricas, espera-se um comportamento exemplar (e por que não dizer, assexuado?) das mulheres. Sob essa ótica, a Pombogira é a entidade de Umbanda mais transgressora que se manifesta, mais subversiva até que o exu masculino, já que do homem se espera o caráter viril, impetuoso e ousado, mesmo que demonizado. Dessa forma, no imaginário popular, a Pombogira, além de ser o demônio, é também a prostituta, a mulher sem pudor, que em vida não tinha limites sexuais e que, agora, no mundo espiritual continua tendo um comportamento promíscuo.
No entanto, essa é uma visão estereotipada das Pombogiras, uma visão repleta de senso comum e até mesmo de folclore. É preciso entender Pombogira antes de falar dela, e essa não é uma tarefa fácil e requer responsabilidade.
Tanto quanto os caboclos ou pretos-velhos, as pombogiras são incansáveis trabalhadoras do Astral e, assim como os exus, são pouco compreendidas, muitas vezes até pelos próprios seguidores das religiões afro-ameríndias, que no lugar de desmistificar a imagem diabólica e promíscua dada a essas entidades, acabam por reforçá-la, através da propagação do senso comum, fruto da falta de compreensão da própria crença que professam.
Segundo essas religiões, prevalece no universo o princípio da dualidade – não confundir com maniqueísmo – assim, o bem e o mal, o masculino e o feminino, o positivo e o negativo, a luz e as trevas fazem parte do mecanismo que movimenta o mundo. Dessa forma, a Pombogira é um elemento importante para esse funcionamento, já que ativa o lado feminino espiritual, o que faz das religiões que cultuam essa entidade algo ímpar, pois é sabido que a maioria dos credos prima pelo masculino, excluindo de forma despótica a figura feminina, ou colocando-a em condição subalterna.
Mais uma vez, portanto a Pombogira aparece como uma figura subversiva pelo simples fato de manter evidente a sua condição feminina. Na Umbanda e nos cultos similares, a Pombogira, cujo arquétipo prima pela feminilidade e sensualidade nela contida, não é uma entidade de segundo escalão ou subserviente. É tão atuante e senhora de si como as demais e, também nesse aspecto, pela própria subversão inerente a essa categoria de espíritos, a Umbanda se torna única e estende esse caráter ao mesmo tempo subversivo e libertário às ações de seus seguidores. Um claro exemplo disso é o fato de existirem sacerdotisas na Umbanda – em grande quantidade, em detrimento de outras religiões, onde a liderança sacerdotal é predominantemente masculina.
Afirmar categoricamente que existe uma relação entre a Pombogira e esse fato seria algo arriscado demais, mas certamente a crença no poder dessas entidades faz com que os seus adeptos (homens ou mulheres) passem a enxergar a figura feminina de forma menos arraigada nos princípios machistas da sociedade, permitindo assim que as mulheres assumam a liderança do culto e se tornem respeitadas. Não são poucos os homens, seguidores desses cultos, que reconhecem e respeitam a autoridade de suas sacerdotisas ou mães-de-santo. A Umbanda vence as barreiras de gênero e o culto às Pombogiras certamente contribui muito para isso.
Entretanto (e paradoxalmente), mesmo entre os seguidores desses cultos ainda existe certa incompreensão da figura da Pombogira, como já dito anteriormente. Muitos ainda propagam a falsa idéia da mulher sensual e demonizada. Para reforçar essa crença, soma-se o fato de que essas entidades são muito procuradas – e eficientes – para a solução de casos materiais e especialmente amorosos. O fato de estarem predispostas a auxiliar os aflitos no amor parece dar a elas um status ainda mais estigmatizado, mais ligado à figura da mulher pervertida, dada a aventuras sentimentais. Porém, uma análise fria pode nos dar outra visão: a de que todos os aflitos têm direito a auxílio espiritual, independente da ordem do seu problema – seja afetivo, material, financeiro ou familiar.
Mais uma vez as raízes judaico-cristãs nos levam a um julgamento de valor. Perpetuou-se, ao longo dos séculos, a crença de que certos problemas não podem (ou não devem) ser levados à esfera divina. Em outras palavras, pessoas com problemas relacionados ao amor e à sexualidade não são dignas de ser ouvidas e auxiliadas pelas forças divinas. Seria uma espécie de profanação ou banalização do divino levar esse tipo de problema à sua apreciação, mais eis que novamente a Pombogira surge como figura subversiva no cenário espiritual, sempre disposta a atender àqueles que sofrem questões sexuais ou amorosas.
Demonizadas ou não, compreendidas ou não, essa qualidade de espírito desempenha importante papel no funcionamento das religiões afro-ameríndias. Sua função não é apenas espiritual, mas é também social e ideológica, pois ao socorrer os desvalidos e aflitos no amor coloca a todos – homens e mulheres, ricos e pobres – em condições igualitárias, e também porque dão aos seus cultos um caráter libertário, tanto no que se refere à igualdade de gênero quanto à própria liberação sexual, pois conseguem desassociar o sexo do pecado, do profano e do intratável. São entidades que acima das questões amorosas, primam pela liberdade do ser humano e pelo respeito às suas escolhas.
Douglas Fersan – Sociólogo/Historiador
Julho de 2010
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